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O SONO DA ROTINA

O SONO DA ROTINA

O primeiro e maior obstáculo a toda e qualquer realização espiritual é que quase todo mundo dorme. Há anos que ensino isto e encontrei muito poucos que tiveram real interesse em ser despertados. E, segundo me consta da experiência de outro Mestre do qual lhes falarei a seu tempo (Georges Gurdjieff, cujo Discípulo mais conhecido foi Peter D. Ouspensky), tampouco ele, não obstante a sua envergadura que tanto ultrapassa a minha, foi mais feliz neste sentido. E esta seria a primeira resposta a uma das três questões anteriores (N. R.: questões trazidas em capítulos anteriores do livro): fica evidenciado que não se pode falar da realização a todo mundo, porque muitos seres não querem e outros não podem se acercar a ela.

E não podem porque dormem. Dormem totalmente, ainda que o ignorem e muito se aborreceriam se alguém lhes dissesse. Ou, como verifiquei muitas vezes, não compreendem, riem-se e seguem dormindo. "Mas de que sono o senhor nos está falando?" - perguntou o leitor.

Vamos a isto. O ser humano acreditava até não muito tempo em dois estados: sono e vigília. E, quando não dormia - no sentido corrente que esta palavra tem - acreditava estar bem acordado. Mais tarde admitiu-se que havia outros tipos de sono: sono com sonhos e sem eles; sono magnético, sono hipnótico, sono letárgico, sono anestésico. E vão seis!

Pois bem. O ser humano terá que aceitar, por pouco que se importe, que há muitos outros estados de sono. É, por exemplo, um deles, o do que olha, ouve e não entende, como ocorre todos os dias: o corpo está desperto, porém a mente está semi-adormecida, para poder ausentar-se por lugares ou fatos que lhe interessam mais do que aquele no qual se encontra! O que se habituou chamar de "distração" não é, em realidade, se não um sono que, a sua vez, tem cem modalidades e graus de intensidade. Mas há um tipo de sono mais notável ainda. É o dos robôs e autômatos de cada dia!

Um escritor fez, com certo humor, a descrição de um boneco que podia conversar em qualquer lugar: rua, escritório ou salão, pois tinha no seu interior cerca de duzentos "rolos", tipo "pianola" antiga, que lhe permitiam responder a qualquer pergunta, dado que as pessoas dizem sempre a mesma coisa sobre os mesmos temas...

Muito antes de ler essa novela, isto é, em minha juventude, eu já tinha chegado a esta mesma conclusão e visto que, de cem pessoas, "noventa e tantas", ao receber o estímulo de uma frase qualquer – afirmativa ou interrogativa – sobre qualquer assunto, reagem com lugares comuns, de acordo com o que está escrito no jornal da manhã, da tarde ou na última revista etc. Para encontrar um conceito “PRÓPRIO” (certo ou errado, pouco importaria...) que prove que a pessoa pensou com sua própria cabeça, é preciso procurar muito.

O mesmo ocorre em quase todas as demais ordens da vida. As pessoas levantam-se, vestem-se, comem, trabalham, voltam a comer, deitar e levantar. Encerram-se assim cinco ou seis ciclos diários. O especial ritmo do domingo ou do feriado instala-se a seu tempo com a precisão de uma peça intercambiável. E os que trabalham organizam (?) sua vida diária com a mesma rotina, com a mesma falta profunda de originalidade, de sentido criador, de inquietude construtiva etc.

Resumindo: a vida tem-se transformado numa imensa rotina. E a velocidade tão louvada do viver atual quase obriga a mais e mais rotina. São 18 minutos para almoçar, se tomará o mesmo meio de locomoção e se responderá sempre do mesmo modo a mesma pergunta, pelo mesmo telefone, à mesma pessoa, que pergunta ou deseja a mesma coisa... Se for possível, ao mesmo preço, único fator que não está incluído na rotina visível, mas está na outra rotina: dos aumentos periódicos de preços, ou relacionados com outros fatos rotineiros também.

E a mesma rotina faz impor: à criança uma vida padronizada; à professora, idem; e ainda sacerdotes e instrutores atuam com o tempo contado, o modo medido, a atuação estereotipada. E assim segue a fabricação de gerações cada vez mais padronizadas, cada vez menos originais, e nas quais o único lucro é um pouco de sentido coletivo.

Quase todas as pessoas têm noções gerais e superficiais de tudo; falam e falam muito mais do que necessário, baseados no que viram e ouviram na televisão. Qualquer pessoa opina sobre economia, política, sobre religião, sobre filosofia e sobre arte, com uma ilustração de superfície, informada em fontes superficiais também. Cada um se outorga a si mesmo uma condição em cada modalidade. São, por exemplo, católicos, democratas, liberais e cultos, conforme a definição que dão, sem que ninguém lhes peça.

Mas, se os observarmos um pouco, descobriremos que nem praticam sua religião, nem cumprem os preceitos cristãos; que burlam o quanto podem as leis, decretos e fiscalização, nesta mesma democracia que pretendem admirar e defender; que sua liberalidade termina onde começa o seu interesse, e sua liberdade mental termina quando surgem os prejuízos e o temor ao que dirão; que sua cultura é padronizada, que já esqueceram o básico do que estudaram, e que, apesar de se envergonharem de carregar embrulho pela rua, seu progresso, no que diz respeito à educação, não vai até oferecerem o lugar em um coletivo, nem deixarem de se acotovelar nas filas!

Surpreendem-se de não poderem acercar-se à REALIZAÇÃO! O que nos surpreenderia seria se conseguissem se acercar a ela, sem deixar antes sua rotina feita de mil defeitos, de mil teimosias, de mil indiferenças e, resumindo, de um enorme egocentrismo e uma total indiferença pelo alheio, o elevado e o desinteressado.

Eu sei que este quadro está um tanto exagerado. Mas não nos esqueçamos de que o ensinamento tem por finalidade PROCURAR despertar os "que podem ser despertados", e não conheço despertador silencioso! Por outro lado, o que a pessoa que lê isto tenha de bom ou já desperto, ou em vias de realização, não será molestado por estas observações, que não tem caráter de crítica, mas apenas de diagnóstico diferencial. É necessário que o que dorme reconheça que assim está. E que decida por si mesmo se prefere seguir em seu "tranquilo" sono ou se o atrai o despertar, com todos os incômodos que possa causar ao homem de rotina! Este é o significado do sono geral. Fiz muitas vezes a experiência com os dormidos. Faço-o ainda todos os dias, com muito pesar. Nada mais fácil que dar às pessoas a oportunidade de ouvirem alguma coisa espiritual, algo sutil, de fazê-las escutarem um fato ou uma definição relativa à REALIDADE. Geralmente o resultado é clássico: mal terminada a frase ou a ação de alguém, o dormido segue tranquilamente com o que fazia ou falava antes. Não viu, sentiu, ouviu, compreendeu nem desejou nada. Está encerrado dentro de sua rotina como o pintinho dentro da casca do ovo. Sonha que vive. E a reiteração de tal sono convenceu-o, há tempos, de que assim é. E não deseja sair de um estado no qual pode seguir pensando PRINCIPALMENTE em si mesmo como pessoa visível. Portanto, não se os pode despertar à força, pois suas reações contra tais tentativas são más, tanto para eles quanta para os que os rodeiam. Não há outro remédio que os deixar em sua rotina e, no possível, os ajudar quando algo de grave - em qualquer modo - acontecer-lhes.

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