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A Liberdade

A Liberdade

(Trecho de “Mística Cristã”, por Paul Sédir, tradução de Anderson Fortes de Almeida, e revisão de Mírian Portugal Torres)

De todas as inumeráveis forças que nos constituem, só a vontade nos pertence; as outras são empréstimos; ela é nossa propriedade, as outras são depósitos de vontades anteriores, os instrumentos de trabalho para as obras que virão. Por conseguinte, frequentemente, muito frequentemente, é o Passado que se impõe, e nossas decisões permanecem escravas ao invés de serem as livres filhas do Futuro visitando nossa alma imortal.

Meus preconceitos, minhas cobiças, a influência de minha raça, de meu meio, todos esses prolongamentos do Anterior, onde dominam as taras e as mesquinharias, é lhes obedecendo, infelizmente, que imagino estar agindo como homem livre. Pareço o velho escravo das galés que se inclina, ao caminhar, para o lado da bola de seu grilhão. Não deveria me endurecer contra essas solicitações fatídicas? E a mais alta higiene espiritual, não seria o regime da renúncia?

Sim, uma vontade só é forte na medida em que é livre; mas ela só se torna livre na medida em que se aproxima do Espírito; é preciso ainda que essa proximidade não seja especulativa ou teórica; que ela seja efetiva; que esculpa uma semelhança do Ideal em nós, que pelo querer, por suas obras, se edifique um corpo; que ele possa nos obrigar a todas as penas; que ele faça de nós os mártires de nossos sonhos.

A liberdade é a única mãe legítima de nossas vontades. Quando os filósofos falam “vontade”, eles se parecem com o colegial que, diante de uma barraca numa quermesse, admira os músculos disformes de algum lutador obeso. A potência volitiva obtida por artifícios psicológicos – ou, às vezes, fisiológicos – pode conquistar a admiração. Há diversos tipos de vontade: a de um atleta está em seus músculos; a de um magnetizador, em seu duplo; a de um filósofo, em seu pensamento; assim sucessivamente. Mas o homem cuja vontade está em seu lugar, no centro, o homem que diz suavemente: “Quero isso porque creio nisso”, e que se põe a caminhar sem jamais esmorecer, lança sobre o futuro diques irresistíveis. A verdadeira força é calma; a energia verdadeira é suave. O difícil é dizer “eu quero” com simplicidade. Que profundidade de caráter é preciso para ser simples! Assim que o conseguimos, tudo se torna possível e as mais fantásticas imaginações começam a tomar corpo. A simplicidade encontra joias lá onde a análise e o refinamento parecem ter tudo inventariado. Ela restitui à inteligência a mais lúcida visão e permite ao sentimento exaltações que não arriscam o desequilíbrio. Iguais chances de sucesso a mais então, segundo as visões humanas; e, segundo as visões divinas, muito mais chances ainda para obter socorros providenciais.

Não confundam as coisas que vêm do eu em nós com as coisas que vêm de Deus. Essas últimas são Liberdade, mesmo que elas comportem disciplinas e renúncias; aquelas são cativeiro, mesmo quando elas rompem barreiras. Ainda que sua justeza e generosidade aparentes permitam-lhes ter êxito, elas melhoram apenas superficialmente e geram transtorno, ao passo que uma ideia, justa segundo o Absoluto, e generosa segundo a generosidade divina, adquire uma força invencível de realização tão logo encontre um mártir. Não basta que um cérebro a conceba e que uma boca eloquente a exprima; é necessário que um coração e um corpo intrépido a encarnem a qualquer preço.

Eu não saberia enfatizar o bastante como é importante compreender bem o conceito de Liberdade. O que cremos geralmente ser escolhas não são senão verdadeiras quedas espirituais de um oposto a outro. Toda a minha natureza, que é meu destino, me impele e me arrasta para um excesso e depois para o seu oposto; meu suposto livre-arbítrio é então apenas determinismo. Ele se tornará ele mesmo novamente quando não for mais Eu que escolherei, quando for Deus em mim. Tal é a razão da renúncia mística; talvez haja outras.

Na maior parte do tempo, toma-se uma resolução sem quase refletir, por impulso, ou depois de um exame que não ultrapassa o círculo das preocupações correntes. Os homens conscienciosos que deliberam à luz dos princípios primeiros, o Justo, o Legítimo, o Verdadeiro, o Belo, o Ideal: esses homens são bem raros, infelizmente! Seria desejável, entretanto, e muito nobre que, para esses conselhos secretos que se dão face a face com a sua consciência, onde se analisam as motivações, onde se depuram as intenções, onde se aquecem as energias – seria muito conveniente e nobre que se entrasse no Santo-dos Santos de si mesmo, sob a imutável claridade da lâmpada eterna.

Gestos e palavras, sentimentos e pensamentos recebem de Deus uma força tanto mais pura e bela quanto menos intermediários lhes transmitirem tal força. Pode-se diminuir o número de intermediários; basta aproximar-se de Deus, conceder a Deus um lugar maior em nós. Não é matar o eu que é preciso; mas mudá-lo, orientá-lo, transplantá-lo, transmutá-lo. Obedecendo ao eu, fazendo a nossa própria vontade, acreditamos romper um elo, enquanto acrescentamos um peso a mais a nossos grilhões. Os ascetas o sabem por experiência; e nós não devemos sorrir diante do relato sobre os escrúpulos dos santos que perseguem o egoísmo em suas formas mais esquivas e que apontam como faltas graves os mais leves movimentos do individualismo. As qualidades do temperamento, as formas radicais do caráter, o aspecto mental, são toda a nossa história anterior, resumida, cristalizada; são o nosso principal inimigo; o nosso tentador permanente; o outro tentador, o Diabo, só vem nos ver em circunstâncias excepcionais. Essa atração incessante de si para si: pelo menor esforço, ou pela apropriação de tudo o que se passa a seu alcance, essa indolência dos hábitos, ou essa insaciável curiosidade, esse medo do risco ou essa violência na luta, todas essas figuras habituais do egoísmo são apenas prolongamentos de raízes inumeráveis que estão em nós desde sempre. Elas se parecem com as figuras do altruísmo, por sua forma; é seu espírito que difere. Um homem caridoso, um santo, pode ter uma prudência que tem um ar de preguiça, uma regularidade que se crê ser o aspecto mecânico do hábito, um ardor de apostolado que parece combativo, uma discrição que se toma por pusilanimidade. A diferença das motivações faz todo o valor de nossos atos, no julgamento de Deus.

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